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ALMANAQUE DO FLUMINENSE

A curiosa história da camisa que desbotava.

Updated: Nov 7, 2022


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Pode não parecer mas a camisa da foto acima é nada mais nada menos do que a primeira camisa tricolor do Fluminense, utilizada pelo clube nas temporadas de 1905 e 1906. Desbotada não pelo tempo mas após repetidas lavagens, ela é uma camisa histórica, vencedora do primeiro Campeonato Carioca e muito provavelmente pertenceu a um dos fundadores do clube. E é justamente a sua curiosa história que eu vou contar agora, utilizando como principais fontes: os documentos (atas de assembleia e relatórios) existentes no Flu-Memória, o livro “História do Fluminense” do escritor campineiro Paulo Coelho Netto (1902-1985) publicado em 1952 por ocasião do cinquentenário do clube e espécie de “Bíblia” do Tricolor, e também as etiquetas dos próprios uniformes em si, hoje parte do acervo do museu do clube das Laranjeiras.

Ao ser fundado em 21 de julho de 1902, o Fluminense nasceu sem cor, uniforme ou bandeira. Esse assunto sequer foi tratado nas primeiras reuniões de diretoria. Foi só em 17 de outubro com a aprovação dos Estatutos que as primeiras cores do novo clube foram estabelecidas, no caso o cinza e o branco. Não se sabe ao certo quem definiu essas cores. Aparentemente não houve votação para a sua escolha. O que se sabe é que elas foram escolhidas por não existir no Rio de Janeiro na época nenhum outro clube com essa combinação de cores, como afirmaria Oscar Cox em assembleia em dezembro de 1903 (fig. 1).


fig.1 – Ciente da insatisfação de vários sócios com as cores cinza e branco originais do Fluminense, Oscar Cox explicava em assembleia realizada em 12 de dezembro de 1903 os motivos da escolha da camisa cinzenta.


O primeiro uniforme do Fluminense compunha-se, portanto, conforme já dito, de camisa branca e cinzenta, metade de cada cor, com gola, trazendo o escudo, também branco e cinzento, metade de cada cor, e monograma “FFC” em vermelho, do lado esquerdo do peito. Além de calção branco e meias pretas. Sua estreia se deu apenas em 11 de junho de 1903 em Niterói num amistoso entre “brasileiros” x “ingleses”, como eram chamados os jogos envolvendo sócios do Fluminense contra um combinado de sócios do Paysandu e do Rio Cricket, esses dois últimos, clubes da colônia inglesa. Vale ressaltar que os “brasileiros” atuaram nessa partida sem o escudo do Fluminense bordado no peito (fig. 2).


fig. 2 – A estreia da camisa cinza e branca do Fluminense (ainda sem o escudo bordado no peito) se deu em 11 de junho de 1903 num amistoso entre “brasileiros” e “ingleses” no campo do Rio Cricket em Niterói. Permanece um mistério que uniforme o Fluminense teria utilizado em seus primeiros jogos em 1902.


O longo intervalo de tempo (oito meses) entre a aprovação do uniforme cinzento e sua estreia tem uma explicação óbvia: as camisas eram importadas da Inglaterra e portanto, numa época que uma viagem de navio entre o Rio e a Europa não levava menos de duas semanas, não é difícil imaginar que todo o processo de aprovação das amostras de tecido, encomenda e entrega de material, consumia alguns meses. Nesse caso específico espaço de tempo ampliado pelo longo período de inatividade do clube (a temporada de futebol ia só de maio à outubro).

Ao doar uma antiga camisa sua ao acervo do clube na década de 1940, o sócio-fundador Álvaro Drolhe da Costa afirmou na carta que acompanhou a doação que as primeiras camisas do clube (um conjunto de doze unidades) foram compradas na “Casa Scott” de Londres. A etiqueta da camisa cinza e branco existente no Flu-Memória, entretanto, é de uma loja chamada “Stokes” (fig. 3). Minhas buscas por uma loja de artigos esportivos chamada “Scott” em catálogos de endereço de Londres da época Eduardiana mostraram-se infrutíferas, o que me leva a crer que Álvaro confundiu as bolas e quarenta anos depois trocou “Stokes” por “Scott”. Acredito então que dê para afirmar com absoluta certeza que a “Stokes & Co. Ltd.”, loja especializada em artigos esportivos localizada no número 74 da Cornhill St. no coração de Londres, é de fato a primeira fornecedora de material esportivo do Fluminense.


fig. 3 – A loja especializada em artigos esportivos “Stokes & Co. Ltd.”, localizada no número 74 da Cornhill Street, bem no centro de Londres, foi a primeira fornecedora de uniformes do Fluminense.


O uniforme cinza e branco, porém, teria vida curta, pois era do desagrado de muitos sócios. De fato isso é mencionado em assembleia realizada em 12 de dezembro de 1903 quando Félix Frias propõe a mudança de cores e sugere a adoção das cores cinzenta e encarnada. Sua proposta é posta em votação e rejeitada por dez votos contra seis. Em seguida, Edwin Cox pede a palavra e propõe as cores azul claro e azul escuro. Proposta igualmente rejeitada por 14 votos contra dois. Nada resolvido, a decisão sobre uma possível mudança de cores ficava adiada para uma próxima reunião.

O assunto só voltaria à baila em 15 de julho de 1904, em nova assembleia, dessa vez extraordinária, convocada especificamente para tratar das cores do clube, e motivada por uma carta dos sócios Oscar Cox e Mário Rocha, que encontravam-se em Londres, onde diziam que depois de percorrerem diversas lojas de artigos esportivos não só não haviam encontrado no mercado camisas na cor cinzenta como acreditavam que seria muito dispendioso mandar fabricá-las, e que pelos motivos expostos tomaram a deliberação de indicar as cores encarnado, branco e verde. Posta em votação a proposta foi aprovada por unanimidade. Como imediatamente em seguida foi realizada uma votação para o preenchimento de um cargo de diretoria e foram contabilizadas 17 cédulas, não é nenhum disparate afirmar que o Fluminense tornou-se tricolor graças a esses mesmos 17 votos, sendo que os autores de apenas cinco deles são conhecidos pois são mencionados em ata: Virgílio Leite, Francis Walter, Raul Rocha, Carlos Sardinha e Horácio da Costa Santos.

Agora tricolor, o Fluminense, entretanto, continuaria jogando por algum tempo de cinza e branco. Foi assim na famosa excursão da equipe à capital paulista na primeira semana de setembro. Oscar Cox só retornaria ao Brasil no dia 26 desse mesmo mês, e imaginando que ele tenha trazido os uniformes tricolores consigo na bagagem, era tarde demais para eles serem usados na temporada corrente, pois os jogos em São Paulo foram oficialmente os últimos do Fluminense no ano e embora não se possa descartar a hipótese dos novos uniformes terem sido utilizados pelos sócios ainda em 1904 em algum “jogo interno” entre eles, o mais provável é que a camisa tricolor tenha feito sua estreia somente em 1905, sendo o primeiro registro fotográfico da camisa tricolor o do amistoso contra o Paulistano de 25 de junho de 1905, onde elas aparecem bastante amarrotadas, provavelmente por terem sido utilizadas nos dois outros amistosos disputados em São Paulo nos três dias anteriores (fig. 4).


fig. 4 – A primeira foto da camisa tricolor sendo utilizada é de 25 de junho de 1905, por ocasião do terceiro jogo da excursão do Fluminense à São Paulo naquele ano contra o Paulistano. Existe uma história curiosa sobre essa foto que pode ser conferida no post: “O curioso caso da foto adulterada” aqui no Almanaque do Fluminense.


Diferentemente da camisa cinza, a tricolor tinha bolso e o escudo era “vazado” (apenas seu contorno e as iniciais eram bordados em branco no tecido). A listra branca que separava a faixa verde da encarnada era bem mais fina (me lembro de ter anotado em algum caderno a medida exata da largura em centímetros das três cores originais do Flu, mas até encontrar onde anotei isso fico devendo esse detalhe) do que nas camisas tricolores posteriores consideradas clássicas. Fabricado pela Bukta (empresa fundada em 1879 em Manchester e existente até os dias de hoje), ela foi comprada na Benetfink, espécie de Mesbla/Sears da Londres da época (fig. 5). O que bate com a informação de que Oscar Cox e Mário Rocha haviam percorrido diversas casas de artigos esportivos sem sucesso, pois foi curiosamente numa loja de departamentos que foi comprada as primeiras camisas tricolores do Fluminense (fig. 6)!


fig. 5 – As primeiras camisas tricolores do Fluminense foram fabricadas pela “Bukta”, malharia fundada em 1879 em Manchester e existente até os dias de hoje.


fig. 6 – Anúncio de jornal da loja de departamentos “Benetfink”, localizada na Cheapside St. em Londres, onde foram adquiridas as primeiras camisas tricolores do Fluminense. A loja, que tinha um serviço de entregas para qualquer lugar do mundo, dava desconto na compra de um jogo de 12 camisas (por que não 11?).


O relatório da diretoria de 1905, divulgado em dezembro daquele ano, apresentava um estoque de 23 camisas disponíveis para à venda, com 37 já tendo sido comercializadas ao preço de 9$ cada unidade aquela altura, de um total de 60 do estoque original. Mas essas camisas eram apenas parte do uniforme do sócio do Fluminense, que incluía também blazer, meias, boné, lenço, fita para chapéu e até gravata! Aparentemente apenas o calção não era vendido pelo clube (fig. 7)!


fig. 7 – Relatório da diretoria de 1905 dando conta do estoque de uniformes do Fluminense. As peças adquiridas na Inglaterra eram revendidas aos sócios, gerando lucro para o clube.


Outro aspecto interessante diz respeito às compras de material esportivo relatadas nas planilhas de despesas desses primeiros anos do Fluminense. O relatório de 1902-1903 mostra gastos de 13$ à 67$ mensais com bolas, bombas de encher, bandeiras e “goal-nets” (redes). Nada é mencionado sobre camisas. Por que as camisas cinza e branco não passaram pela contabilidade do clube eu não sei dizer. Talvez tenha sido uma compra casada, vendida diretamente para cada jogador por quem quer que as tenham trazido da Europa. Já o relatório de 1904 mostra compras mensais na casa de 20$ para os meses de março, abril, agosto e outubro e um valor de 258$ em julho (fig. 8). O relatório dessa vez não especifica o que foi comprado a cada mês, mas o valor de despesas mais de dez vezes maior no mês de aniversário do clube não deixa nenhuma dúvida quando foram compradas as primeiras camisas tricolores: em julho de 1904, um mês após terem sido aprovadas. Novas compras de uniforme ocorreriam em maio (102$) e agosto (1.289$) de 1905 e em junho (365$) e julho (551$) de 1906. Como o que foi comprado nesses meses não foi especificado, podendo ser desde blazers até gravatas, fica difícil estabelecer quantas levas de camisas tricolores foram adquiridas nesse período, se todas foram efetuadas na mesma loja (Benetfink) e a qual leva pertence a camisa da foto que encabeça esse texto.


fig. 8 – O valor de despesas com material esportivo em julho de 1904 dez vezes maior em relação aos outros meses, apresentado no relatório da diretoria ao final do ano, sugere que foi no mês de aniversário do clube que a primeira leva de camisas tricolores foi comprada. Note que por engano foi escrito “1903” em vez de “1904”.


Em sua primeira encarnação, a camisa tricolor teve vida curta (dois anos e meio), pois surpreendentemente em Assembleia realizada em 26 de dezembro de 1906 os sócios decidiram mudar pela segunda vez o uniforme do clube. Dessa vez para uma camisa branca com faixa tricolor de três polegadas e meia a tiracolo. Mas o que teria levado os sócios a tomar essa medida tão drástica? A resposta pode ser encontrada no relatório de 1906, publicado em dezembro daquele ano, onde se lê: “Com o uso continuado as actuais camisas de nosso uniforme perdem as cores tornando-se quanto antes necessária a sua substituição.” (fig. 9)


fig. 9 – Relatório da diretoria de 1906 explicando o motivo da substituição da camisa tricolor por um modelo todo branco. Curiosamente deliberara-se que o escudo do clube deveria ser estampado no peito, mas quando finalmente lançada, ele foi substituído por uma faixa diagonal do ombro à barra inferior.


A camisa da foto que ilustra esse texto é a prova concreta desse fato. Desbotada não pelo tempo, mas praticamente de imediato, após algumas lavagens, embora isso não fique evidenciado de forma clara nas poucas fotos existentes do time posando antes dos jogos nesse período. Não se sabe ao certo quando ela foi utilizada pela última vez, pois a camisa branca com faixa diagonal não foi adotada de imediato. Fotos da época (fig. 10) mostram que o Fluminense jogou de tricolor nos dois primeiros jogos de 1907 e que no último jogo desse mesmo ano, em 27 de outubro, o clube já atuava de branco. Não existem fotos de nenhum dos outros jogos dentro desse intervalo. O relatório de 1907 mostra em sua lista de despesas compra de uniforme apenas em maio (1.000$), portanto é quase certo que só a partir de junho de 1907 o Fluminense abandonou o uniforme tricolor e passou a jogar de branco.


fig. 10 – Foto do time do Fluminense posando antes do amistoso contra o Americano de São Paulo em 28 abril de 1907, um dos últimos jogos do clube com a sua camisa tricolor original. Não dá para discernir se a descoloração da faixa verde (?) em algumas camisas é real ou imaginação minha devido a má qualidade da foto.


Mas a história da camisa tricolor original não termina aí pois ela seria relançada em 1909. Teria o problema de sua descoloração sido resolvido a essa altura? Tudo indica que sim pois o clube tem no seu acervo blazer e camisa dessa época com suas cores originais intactas. Tanto um quanto outro tem, entretanto, etiqueta da Stokes (fig. 11). O Fluminense provavelmente voltando a recorrer a sua primeira fornecedora após o fiasco da Bukta/Benetfink. Mas se isso é verdade por que o Fluminense abandonou a camisa tricolor outra vez e voltou a jogar de branco (dessa vez sem a faixa a tiracolo) em 1910? Essa é uma pergunta para a qual eu não tenho resposta. O livro com as atas de reuniões de diretoria entre 1902 e 1915 que poderia responder essa pergunta encontra-se, acredito, irremediavelmente perdido. Fato é que só em 1911 o Fluminense voltou a utilizar o uniforme tricolor, agora, porém, de forma definitiva. Mas era um outro modelo, diferente da camisa original, tipo colant, com botões apenas na parte superior, gola branca, sem bolso e com escudo estampado no lado esquerdo do peito em vez de um simples monograma.


fig. 11 – Ao contrário das camisas tricolores adquiridas na “Benetfink”, os modelos comprados na “Stokes” não desbotaram e após mais de cem anos suas cores originais encontram-se intactas.

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