Um Joaquim chamado João.
- Carlos_Santoro
- Mar 13, 2018
- 9 min read
Updated: Nov 3, 2022

Meu maior arrependimento em todos esses anos pesquisando Fluminense foi ter divulgado, em duas publicações distintas, o nome errado de dois antigos jogadores do Flu, mais especificamente o goleiro “Anderson William Waterman”, tetracampeão carioca de 1906-1907-1908-1909, e “Joaquim da Costa Santos”, meia-direita campeão carioca de 1909 e meu personagem dessa semana. Por minha culpa, esses nomes tem sido replicados em sites e livros desde então, e é com o intuito de corrigir de uma vez por todas esse equívoco que eu resolvi escrever este post. Nele eu conto um pouco sobre a minha trajetória de pesquisa de nomes de antigos jogadores, como eu fui levado ao erro nesses dois casos acima, como eu consegui corrigi-los e de quebra conto a história de mais um dos pioneiros do futebol, como tenho feito a cada três semanas aqui no Almanaque.
Eu sempre fui interessado em números ligados ao esporte, e na década de 1980 eu já compilava num velho computador CP-500 estatísticas relacionadas à Fórmula 1. Era o auge da participação dos pilotos brasileiros na principal categoria do automobilismo mundial, mas após a morte do Ayrton Senna eu perdi o interesse pelo esporte e resolvi redirecionar minhas pesquisas ao meu time do coração. Na época inexistiam estatísticas sobre o Fluminense, sequer se sabia quem era o maior artilheiro da história do clube ou o jogador que mais atuara, e foi atrás dessas informações que eu decidi montar um banco de dados com fichas de todos os jogos da história do Tricolor. Comprei um software chamado Paradox (hoje eu uso o Filemaker) e comecei a montar meu banco de dados com informações que eu colhia no setor de Periódicos da Biblioteca Nacional e nos arquivos do Jornal dos Sports, na época instalado na Rua Tenente Possolo, no Centro.
Após uns dois anos pesquisando eu consegui completar as fichas com as escalações de todos os jogos – pouco mais de 4.000 na época -, e passei, então, a montar as fichas dos jogadores, com seus dados pessoais como nome completo, local e datas de nascimento e morte. Para essa etapa do meu projeto, o Fluminense foi minha principal fonte de pesquisa, mas enquanto o clube é rico em informações sobre seus atletas profissionais, pouca informação havia sobre os jogadores amadores (1902-1932) e foi fora do clube que eu precisei buscar informações.
Dentro do universo dos quase 300 amadores que defenderam o Flu, eu sempre tive um interesse especial nos atletas ingleses, aqueles com sobrenomes estranhos como Cruickshank, Hargreaves, Farquharson ou Crashley, quase todos eles, até então, com primeiro nome desconhecido, como é usual entre os britânicos de dar ênfase apenas ao sobrenome, e foi atrás de informações sobre eles que eu me dirigi na virada do século ao Cemitério dos Ingleses na Gambôa. De lá eu fui encaminhado à Igreja Anglicana da Real Grandeza que administra o cemitério, e examinando os registros de batismo da Igreja eu consegui meus primeiros nomes e cometi meu primeiro erro. Me lembro particularmente de ter descoberto três nomes: Laurence Sefton Andrews, Thomas Keith Kentish e Douglas Sibbald Fox, que assumi tratar-se dos três jogadores do Flu conhecidos até então como, respectivamente, “Lawrence S. Andrews”, “T. K. Kentish” e “Douglas S. Fox”. Hoje eu reconheço que é um erro assumir que uma singularidade de nome, por mais incomum que ele seja, somada à idade adequada, sejam suficientes para decretar que um indivíduo jogou no Flu, e eu procuro sempre por uma terceira informação que pode ser uma nota de jornal, um endereço, uma foto, uma assinatura ou mesmo o relato de um descendente, que ligue aquela pessoa ao Fluminense, antes de confirmá-la no meu banco de dados. No caso dos dois primeiros nomes mencionados acima, com o tempo eu pude provar que se tratava de fato dos jogadores do Flu, e embora eu jamais tenha conseguido confirmar o terceiro, eu não tenho muita dúvida que ele também seja, e no final das contas não houve maiores prejuízos nessa minha identificação precoce.
Na época, me acompanhou ao cemitério e a igreja um jornalista e autor tricolor, que me afirmou que os nomes que eu não conseguisse descobrir ele poderia tentar obter com o consulado da Inglaterra, que deveria possuir registros de cidadãos britânicos que viveram no Brasil. Entreguei-lhe então uma lista de sobrenomes, e semanas depois ele me retornou com os nomes preenchidos, e assim A. W. Waterman, H. W. J. Monk e A. R. L. Wright, só para citar alguns jogadores, se tornaram, respectivamente, “Anderson William Waterman”, “Harrison William Joseph Monk” e “Albert Robert Lantz Wright”. Numa época pré-Google, pré-arquivos online de jornais e pré-sites de genealogia, eu fui rápido em adotar esses nomes e foi aí que eu cometi meu segundo erro, que até hoje eu me arrependo. Não me recordo de ter divulgado os dois últimos nomes, mas o do goleiro tetracampeão carioca eu mencionei no livro do centenário e desde então ele vem sendo replicado, o que não teria problema algum não fosse pelo fato dele estar errado!
Hoje eu percebo o quão ingênuo eu fui em aceitar esses nomes como verdade absoluta. Talvez o desespero em consegui-los, numa época que eu acreditava que jamais conseguiria obtê-los de outra forma, tenha me levado a isso. Além disso, é difícil crer que alguém seria tão maquiavélico a ponto de inventar informação. Mas o tempo mostrou que foi exatamente isso que aconteceu, pois todos os nomes estavam errados. Não existe desculpa, entretanto, um bom pesquisador checa as suas fontes, evita os achismos ao máximo, e só publica o que pode provar. Essa é a lição que eu aprendi, o que por um lado me fez um pesquisador melhor. Com o advento das ferramentas mencionadas acima eu pude ir aos poucos identificando um a um esses jogadores, e só não corrijo publicamente o nome do primeiro, cuja inicial do meio acredito estar errada, porque não obstante eu ter o nome completo, o nome dos pais, irmão e esposa, a data e local de nascimento e até a assinatura da pessoa que eu julgo ser o goleiro, eu ainda não consegui liga-la ao Fluminense, embora não tenha nenhuma dúvida da minha identificação estar correta. Mas Waterman não foi o único nome que eu divulguei errado, pois no livro dos 110 anos eu mencionei um certo “Joaquim da Costa Santos”, e é dele que eu vou falar agora.
Qualquer jogador que tenha vestido a camisa do Fluminense é uma pessoa de interesse para mim. Não importa se ele tenha disputado um só jogo ou quinhentos, no meu banco de dados todos tem peso igual. Daí o meu interesse em Jack da Costa Santos, como era conhecido o meia-direita campeão carioca de 1909, mesmo ele tendo pouco atuado. Minha pesquisa começou como sempre no Fluminense. Seu nome é mencionado oito vezes nos livros de registros de jogos do clube: duas vezes como “Jack da Costa Santos”, três como “J. da Costa Santos”, uma como “Joaquim da Costa Santos” e outra duas como “J. M. (ou Jm) da Costa Santos” (fig.1). Em uma ata de reunião de 1915, eu consegui sua assinatura e ainda em uma outra, seu nome completo: “Joaquim Mário da Costa Santos” (fico devendo esse jpg), ou pelo menos assim interpretei o que estava escrito, e por anos a fio ele foi “Joaquim Mário da Costa Santos” no meu banco de dados, nome que divulguei (sem o Mário) no livro dos 110 anos.

fig. 1 – Jack da Costa Santos é mencionado em escalações no livro de registros de jogos do Fluminense de quatro formas diferentes: J. M., Jack, J. e Joaquim da Costa Santos!
Tempos depois, com a disponibilização de arquivos de jornais on-line com busca por palavras-chaves, eu pude enfim seguir adiante com a minha pesquisa, mas por mais que eu tentasse eu não conseguia encontrar nenhuma informação sobre ele, era quase como se não tivesse existido no mundo alguém chamado “Joaquim Mário da Costa Santos”. Eu resolvi, então, mudar o foco da minha pesquisa.
Por terem o mesmo sobrenome e serem muito parecidos (fig. 2), eu sempre suspeitei que ele e Horácio da Costa Santos, primeiro artilheiro do campeonato carioca, fossem irmãos, o que pude confirmar numa entrevista concedida por um terceiro irmão a um jornal carioca na década de 1930 (fig. 3). Direcionei minha pesquisa, então, à família Costa Santos e comecei aos poucos, através de anúncios religiosos de jornais e informações e documentos colhidos em sites de genealogia a montar a árvore genealógica da família e eventualmente esbarrei num outro problema, Horácio jamais teve um irmão chamado Joaquim! Já estava quase desistindo de seguir por esse caminho quando me lembrei de um detalhe, “Jack” é apelido de “John” em inglês e Horácio teve um irmão mais novo chamado João, que não por coincidência viveu toda a sua infância e adolescência na Inglaterra. Seria então esse João o nosso arredio Jack?

fig. 2 – Os irmãos Horácio e Jack da Costa Santos.

fig. 3 – Entrevista concedida por José da Costa Santos ao Jornal O Globo em 1932 me permitiu confirmar que Jack e Horácio eram da fato irmãos.
Eventualmente, outros documentos (figs. 4, 5 e 6) mostraram que sim. João era de fato o nosso esquivo “Jack”, e descobri também que seu segundo nome era Mancio, que era o que estava escrito na ata mencionada antes, que eu, não conseguindo entender direito os garranchos que lera, interpretara erroneamente como sendo Mário. Por que há duas referências a ele como Joaquim nos arquivos do Fluminense eu não sei dizer. É fato que ele nasceu João, virou John na Inglaterra (fig. 7) e depois Jack. Retornou ao Brasil como Jack e com o tempo talvez, e aqui eu peço permissão para viajar um pouco, Jack tenha virado Jaqui, Jaquim, Joaquim ou a pessoa que preencheu os registros interpretou as duas primeiras inicias de seu nome, JM, como sendo uma abreviatura de Joaquim, ainda mais que ele assinava “Jm” com “J” maiúsculo e “m” minúsculo. Mas não importa, pois não resta absolutamente nenhuma dúvida que o jogador que aparece na foto que ilustra este texto chamava-se João e não Joaquim. E agora eu vou contar um pouco de sua breve e triste história:

fig. 4 – O livro de registros de sócios do Fluminense de 1909 não menciona nenhum JOAQUIM da Costa Santos, mas menciona um JOÃO da Costa Santos, sócio de número 261.

fig. 5 – O endereço e o proponente mencionados acima no livro de registros de sócios do Fluminense de 1920 confirmou minha identificação do jogador. Jack da Costa Santos entrou de sócio do Fluminense em 1909 e como era praxe no clube, os números de matrícula dos sócios eram renumerados a cada ano, por ordem de antiguidade, e em 1921 Jack era o 41º. sócio mais antigo do clube.

fig. 6 – Uma comparação entre uma assinatura obtida em cartório (em cima) e uma outra no Fluminense (embaixo) dirimiu de vez qualquer dúvida sobre a identidade do nosso esquivo Jack. Seu nome era de fato João e não Joaquim!

fig. 7 – No início da década de 1890 a família Costa Santos foi morar na Inglaterra e “João” virou “John”, como demonstra o censo de 1901 acima.
João Mancio da Costa Santos nasceu em 6 de fevereiro de 1889 no Rio de Janeiro, filho do alagoano Horácio Alexandrino da Costa Santos (1848-1918) e da paulista Maria do Carmo Mancio Franco (1853-1940), e foi batizado no dia 14 de julho desse mesmo ano na Igreja de Nossa Senhora da Glória, no Largo da Machado. Seu pai foi negociante de café, diretor de companhia de seguros e diretor do Banco Comercial do Rio de Janeiro. Quando João ainda era criança, a família Costa Santos se mudou para a Inglaterra e foi viver no bairro de Notting Hill em Londres, só retornando ao Brasil dez anos depois, no início do Século XX, fixando residência num casarão no número 51 (atual 197) da Rua Marquês de Abrantes no bairro do Flamengo. Os Costa Santos viveriam nesse prédio histórico, local da fundação do Fluminense, até o final da década de 1900, quando se mudariam para a Rua Dona Mariana em Botafogo.
Jack, como João era conhecido, entretanto, continuaria sendo educado na Inglaterra, e ao retornar ao Brasil no início de 1909, seguiu os passos do irmão e entrou de sócio (número 261) no Fluminense. Em agosto ele faria sua estreia oficial em gramados cariocas, atuando como meia-direita – mesma posição que consagrou o irmão – em um amistoso contra o Paulistano, justamente uma semana após Horácio disputar sua última partida pelo Flu. No domingo seguinte Jack participaria do todo importante clássico contra o Botafogo, que praticamente garantiu o título carioca de 1909 do Fluminense. Na sequência ele disputaria mais três jogos, contra respetivamente América, Haddock Lobo e Riachuelo, todos válidos pelo Campeonato Carioca (fig. 8). Em 1910 ele ainda atuaria no jogo de estreia do campeonato de segundos quadros contra o América, encerrando aí sua trajetória futebolística no Tricolor. Na década seguinte Jack restringiria suas atividades esportivas ao tênis, porém sem muito destaque, e continuaria participando da vida social do Fluminense, clube do qual foi associado por toda a sua vida.

fig. 8 – Jack da Costa Santos disputou cinco jogos pela equipe principal do Flu e anotou quatro gols.
Empregado no comércio, Jack trabalhou na Companhia Souza Cruz, e na tarde do dia 20 de dezembro de 1921, algumas semanas após retornar de uma temporada de descanso em Teresópolis, se trancou no seu quarto na residência de sua família à Rua Dona Mariana, 182, em Botafogo, e deu um tiro na cabeça, por motivos jamais devidamente explicados, embora um jornal tenha especulado ter sido devido ao seu vício em cocaína (fig. 9). Tinha apenas 32 anos.

fig. 9 – Vários jornais noticiaram o suicídio de Jack em 1921.

fig. 10 – Jack da Costa Santos é um de 1.642 jogadores cadastrados no meu banco de dados.

fig. 11 – João Mancio da Costa Santos, o popular Jack, campeão carioca de 1909.
Nota: Um aspecto curioso do nosso trágico Jack, evidenciado pelas duas fotos publicadas neste post, é a ausência (ou atrofia) de sua orelha direita. Seria Jack uma espécie de Carlyle do amadorismo?




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