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À procura de Mr. Waterman.

Updated: Nov 9, 2022


 

Em agosto de 1906, na virada do turno para o returno do primeiro Campeonato Carioca, estreou no gol do Fluminense um sujeito queixudo com nome de famosa marca de caneta-tinteiro (fig. 1). Seu timing não poderia ser mais perfeito pois o goleiro principal da equipe, o inglês Francis Walter, o próprio presidente do clube das Laranjeiras, estava de viagem marcada para seu país natal, de onde só retornaria ao final do ano, depois do campeonato já encerrado. Pelos próximos quatro anos, Waterman, como ele era chamado, reinaria absoluto na meta tricolor, participaria de diversos jogos históricos e conquistaria um jamais igualado tetracampeonato, deixando seu nome gravado para sempre nos livros de história do futebol carioca. Após disputar seu último jogo pelo Fluminense em setembro de 1910, único ano em que não foi campeão, Waterman sumiu dos noticiários esportivos para sempre e embora seu nome pipoque aqui e ali toda vez que é publicada uma lista dos esquadrões campeões cariocas, nunca mais se ouviu falar dele.

fig. 1 – Quatro vezes campeão carioca, Waterman foi o primeiro grande goleiro da história do Fluminense.


Passados mais de cem anos, a identidade de Waterman tornou-se um mistério não resolvido. Quem foi? O que fazia? Para onde foi? De onde veio? São perguntas até hoje sem respostas. Seu primeiro nome permanece desconhecido e ninguém parece saber de seu paradeiro. As pessoas que poderiam responder a essas perguntas, seus próprios companheiros de time, há muito já nos deixaram. Nenhum jornalista, autor ou blogueiro jamais publicou sua história ou demonstrou qualquer interesse por ele. Mas como pode um goleiro tantas vezes campeão – somente Batatais tem mais títulos cariocas pelo Fluminense do que ele – ter sido tão negligenciado pela história a ponto de sequer figurar na galeria de ídolos do museu do Tricolor e cem anos depois continuar sendo um ilustre desconhecido? A resposta a essa pergunta reside, na minha opinião, no próprio período em que Waterman jogou bola.

Waterman pertence ao que eu chamo de “primeira geração” de futebolistas tricolores. Comerciários e bancários de vinte e poucos anos em sua maioria, para quem o futebol era apenas uma atividade de lazer de final de semana. Na primeira década do século XX o “violento esporte bretão” ainda engatinhava no Rio de Janeiro e embora já atraísse um público considerável para a época – na casa de cinco mil espectadores nos grandes jogos -, ele não era ainda o esporte mais popular do mundo que viria a ser. Era um tempo em que jogadores de futebol eram “reles mortais” que não eram chamados a dar entrevistas à imprensa, não recebiam pedidos de autógrafos, não eram reconhecidos nas ruas e muito menos tinham suas fotos estampadas em jornais. Longe de serem ídolos, eram cidadãos comuns, cujo relativo anonimato, anos de pesquisa me mostraram, pode ser comprovado, por via de regra, pelo total desconhecimento por parte de seus descendentes de suas atividades no futebol. Mas afinal, será que é possível descobrir a identidade e o paradeiro de um sujeito comum nascido há mais de um século, de quem sequer sabemos o primeiro nome?

Se alguém me fizesse essa pergunta há 20 anos, eu não hesitaria um instante sequer em responder: não, jamais descobriremos! Mas o mundo mudou nessas duas ultimas décadas. O surgimento da world wide web e com ela de sítios de busca como o Google, de arquivos de jornais on-line com busca por palavras-chave e de sítios de genealogia com toda sorte de documentos, hoje é possível “explorar o mundo” sem sair da sala. E é justamente a história daquele que eu considero – pelas incontáveis horas de dedicação, quase uma centena de documentos coletados, dezenas de nomes investigados, e inúmeros percalços vencidos – o melhor e mais gratificante trabalho de pesquisa que eu já realizei até hoje, que eu vou contar agora. E também de como uma única letra do alfabeto me colocou na pista certa e me permitiu encontrar do outro lado do mundo, após quase dez anos procurando, o paradeiro de um goleiro tantas vezes campeão há mais de um século esquecido!

Eu tomei conhecimento da existência do goleiro Waterman ainda garoto, na década de 1970, vendo seu nome e foto em listas de campeões cariocas publicadas regularmente em jornais e revistas, mas só comecei a me interessar por ele na década de 1990 quando eu comecei a montar meu banco de dados com fichas de todos os jogos e jogadores da história do Fluminense. Pesquisando velhos jornais na Biblioteca Nacional eu descobri a inicial de seu primeiro nome, “A”, mas por mais que eu procurasse jamais encontrei informação alguma sobre que nome seria esse. Posteriormente, pesquisando nos arquivos do Fluminense, eu descobri num velho caderno de endereços de sócios do início do século passado, uma inicial do meio, “W”, em seu nome, e Waterman passou a se chamar “A. W. Waterman” no meu banco de dados (fig. 2). Eu já contei num outro post (ver o artigo “Um Joaquim chamado João” publicado anteriormente aqui no Almanaque) de como num gesto de desespero eu dei ouvidos a terceiros que me passaram a informação errada de que ele chamava-se “Anderson William Waterman” e de como para meu arrependimento, eu divulguei essa informação que vem sendo replicada há anos em livros e na web.

fig. 2 – Há duas referências à Waterman com as iniciais “A. W.” nos arquivos do Fluminense: num livro de registros de sócios onde ele aparece como sócio de número 204 (em cima) e na legenda da foto do time campeão de 1908 em um álbum de fotos e recortes de jornais (embaixo).


Pois bem, há cerca de dez anos eu acrescentei sítios de genealogia às minhas fontes de pesquisa e gradativamente fui descobrindo que todos aqueles nomes de jogadores ingleses do começo do século XX que me haviam sido passados não existiam e tive então que deletá-los dos meus arquivos e recomeçar do zero! Mas por um bom tempo minha pesquisa não avançou, pois Waterman é um sobrenome bastante comum na Inglaterra (supondo que o goleiro do Fluminense fosse de fato inglês e não um brasileiro descendente de ingleses) e estimando que ele tivesse nascido ou na década de 1870 ou na de 1880, haviam simplesmente mais de 100 indivíduos chamados “A. Waterman” nos registros de nascimento da Inglaterra desse período!

Por volta de 2010 aconteceu um fato novo que alavancaria a minha pesquisa novamente: a Biblioteca Nacional começou a disponibilizar on-line seu imenso arquivo de jornais antigos e melhor, permitindo a busca por palavras-chave. Num primeiro momento, entretanto, uma busca pelo termo “Waterman” foi incapaz de apontar seu primeiro nome, mas me forneceu uma informação importante: ele era de fato inglês, pois em 1911 foi publicada uma nota de que ele não jogaria mais pelo Fluminense por estar retornando à Inglaterra. Mas foi uma outra pequena nota publicada no jornal da colônia inglesa, The Brazilian Review, em junho de 1906, listando os ingleses que haviam desembarcado no Rio durante a semana, entre eles um certo “A. Waterman”, que me chamou a atenção e me permitiu de fato dar início à minha busca pelo paradeiro do goleiro do Fluminense (fig. 3).

fig.3 – A menção da chegada de Waterman ao Rio no vapor Magdalena em 19 de junho de 1906 no jornal da colônia inglesa “The Brazilian Review” foi o ponto de partida da minha pesquisa e da tentativa de identificá-lo e encontrar o seu paradeiro.


É claro que não havia nenhuma garantia que o “A. Waterman” que desembarcara no Rio em junho de 1906 era o mesmo “A. Waterman” que estrearia no Fluminense algumas semanas depois, mas era uma real possibilidade, considerando “Waterman” ser um nome bastante incomum no Brasil. A essa altura eu começava a vislumbrar uma luz no fim do túnel pois bastaria conferir a lista de passageiros do navio em que ele viera e eu teria um nome completo para pesquisar, mas inacreditavelmente, para meu imenso azar, a lista continha o primeiro nome de todos os passageiros do navio a exceção justamente de Waterman! Mas nem tudo estava perdido pois a lista me forneceu outras informações relevantes como a confirmação de sua nacionalidade, sua profissão (comércio), seu estado civil (solteiro) e o mais importante de tudo: a sua idade (20 anos) (fig. 4)!


fig. 4 – A relação de passageiros do vapor Magdalena que atracou no Rio de Janeiro em junho de 1906 continha o primeiro nome de todos os seus viajantes menos o do futuro goleiro do Fluminense que aparece na relação como “Mr.  A. Waterman”!


Qualquer pessoa que tivesse 20 anos em junho de 1906 nasceu obrigatoriamente entre junho de 1885 e junho de 1886 e aqueles mais de 100 nomes que eu tinha originalmente para pesquisar diminuíram num piscar de olhos para menos de 20 (o total de “A. Waterman” nascidos nesse intervalo de doze meses). Um número ainda considerável com certeza mas mais factível de ser pesquisado. Com o tempo eu fui conferindo um a um, eliminando aqueles que eram casados ou que já haviam falecido em 1906 e também aqueles que tinham participado de algum evento (viagem, casamento, etc…) fora do Brasil durante a temporada do futebol carioca entre 1906 e 1910. Acabei concentrando meus esforços num certo Albert Waterman, filho de um doceiro, mas uma foto sua publicada num jornal americano na década de 1920 eliminou de vez qualquer chance de tratar-se do nosso goleiro. Apesar de todos os meus esforços, o túnel voltara a ficar escuro, mas mal sabia eu que a resposta para os meus problemas estivera ali, na minha frente, todo esses anos, num pequeno folheto de propaganda de uma festa esportiva realizada em 1907 nas Laranjeiras, e que pode ser encontrado num velho album de fotos e de recortes de jornais existente no FluMemoria!

Em julho de 1907, em comemoração ao seu quinto aniversário, o Fluminense realizou uma festa esportiva em sua praça de esportes nas Laranjeiras. O evento, disputado não só por sócios do Tricolor mas também por associados de outros clubes, consistia de uma série de provas como corridas, saltos, arremesso de peso, cabo-de-guerra e até chute de bola de futebol à distância. Como sempre fazia nessas ocasiões, o clube mandou imprimir em uma gráfica um pequeno prospecto com a relação das provas e os nomes dos juízes e concorrentes que participariam da festa. Entre os nomes mencionados está o de um certo “A. T. Waterman” (fig. 5). Seria esse “A. T. Waterman” parente do jogador do Fluminense? Um irmão talvez? Ou apesar da inicial do meio ser diferente, será que tratava-se do próprio goleiro?

fig. 5 – Há referências à Waterman com as iniciais “A. T.” tanto em prospectos de festivais esportivos que podem ser encontrados no FluMemória (em cima) como na resenha de jogos de críquete do jornal “The Brazilian Review” (embaixo).


Vários fatores conspiravam para essa última hipótese. O Fluminense só teve de fato UM sócio chamado Waterman (embora nesse caso A. T. Waterman poderia ser sócio de outro clube), e além do goleiro somente um outro Waterman é mencionado em jornais cariocas da época: um médico americano chamado Oscar Waterman. Ademais, eu já tinha encontrado naquele mesmo livro de endereços de sócios do começo do século XX outros casos de nomes de associados ingleses com as iniciais erradas e “A. W. Waterman” poderia ser apenas mais um desses casos. De fato entre um nome escrito à mão ou batido à maquina e um outro impresso em gráfica eu tendo a acreditar mais neste último. E deve-se considerar também que nenhum jornal jamais referira-se ao goleiro como “A. W. Waterman” no período em que ele jogou bola (embora existam referências posteriores a ele com essas iniciais). Sem contar que a única pessoa com essas iniciais em registros de nascimento ingleses de 1885 ou 1886 foi por mim logo descartada.

Voltando aos sites de genealogia ingleses eu descobri que havia um ÚNICO “A. T. Waterman” nascido entre 1885 e 1886 (e portanto com 20 anos em 1906): um certo Archibald Thomas Waterman (fig. 6). E melhor, numa lista de passageiros de navio eu descobri que ele havia estado no Rio em 1910 com a esposa (recém-casados e portanto solteiro em 1906) (fig. 7). E ainda: um cartão seu da Marinha da Primeira Guerra Mundial descrevia-o como tendo olhos azuis e as fotos do goleiro tetracampeão pelo Fluminense mostram claramente um sujeito de olhos claros. Depois de longo e tenebroso inverno eu estava convicto que finalmente eu havia identificado o goleiro do Fluminense, afinal qual a chance de dois “A. T. Waterman” estarem circulando pelo Rio por essa mesma época? Na verdade minha convicção era tanta que eu poderia a essa altura simplesmente assumir que se tratava da mesma pessoa e não olhar mais para trás. Mas ao contrário de certo sítio de estatísticas do Fluminense que para preencher dezenas de lacunas em suas informações, inventa escalações, autoria e tempo de gols e até mesmo nome de árbitros, entre outros absurdos – o que para mim beira a psicopatia -, eu prezo muito a correção das informações que publico, e por ter errado anteriormente e sabedor da dificuldade que é corrigir uma informação inicialmente divulgada errada após ela ser replicada infinitamente, eu precisava seguir adiante com a minha pesquisa e provar de fato o que até o momento não passava de especulação. Mas afinal, como provar que aquele cidadão londrino de olhos azuis mencionado nos registros de nascimento ingleses de 1886 e o goleiro do Fluminense eram a mesma pessoa?


fig. 6 – Um único “A. T. Waterman” pode ser encontrado nos registros de nascimento da Inglaterra de 1885 e 1886, um certo Archibald Thomas Waterman.


Fig. 7 – Archibald e sua esposa, vindos de Southampton no vapor “Aragon”, desembarcaram no Rio de Janeiro em 20 de março de 1910.


Uma das formas de fazer isso é comparar uma assinatura de um documento (um registro de casamento por exemplo) com alguma outra existente no Fluminense. E aqui eu aproveito para abrir um parênteses. Uma coisa que precisa ser dita sobre sites de genealogia ingleses, é que eles não disponibilizam registros de nascimento, casamento e óbito, e sim uma referência de onde ele pode ser encontrado, especificando o trimestre do ano, o distrito e o número da página do volume do livro onde o evento foi registrado. De posse desses dados, entretanto, fica fácil adquirir o documento, que você encontra nos Registros Gerais da Inglaterra. Comprar esses documentos não é novidade para mim. Eu venho fazendo isso há anos pois é a única forma de conseguir datas de nascimento e óbito dos jogadores ingleses que atuaram pelo Fluminense no início do século XX. Mas eu só o faço quando o jogador está 100% identificado, que não era o caso do nosso misterioso Waterman. Desta vez, porém, eu abri uma exceção e não hesitei em comprar o documento, pois eu acreditava que minha pesquisa tinha bases sólidas.

De posse da certidão de casamento de Archibald, e consequentemente de uma amostra de sua assinatura, eu me dirigi ao Fluminense e comecei a examinar os arquivos do clube, pois tinha certeza de ter visto a assinatura do goleiro Waterman anteriormente em algum canto. Mas ledo engano. Waterman jamais fora dirigente do clube e sua assinatura não aparecia em nenhuma ata de reunião de diretoria. Infelizmente ele também não havia sido um dos 44 signatários da famosa carta de despedida dos sócios do clube à Oscar Cox, o fundador do Fluminense, que em maio de 1910 deixou o Brasil e foi morar em Londres. Diante desse cenário só me restava uma alternativa se eu quisesse algum dia confirmar que esse cidadão inglês chamado Archibald Thomas Waterman era de fato o elusivo goleiro: localizar seus descendentes e perguntar-lhes!

Lentamente, eu comecei a montar a árvore genealógica imediata de Archibald, acrescentando seus pais, seus avôs, seu único irmão, sua esposa e seus tios, mas num primeiro momento, por mais que tentasse, eu não conseguia descobrir se ele tivera filhos. Seu nome, o de sua esposa e possivelmente o de algum filho não aparecem no censo da Inglaterra de 1911 (o mais recente que foi publicado, o próximo, o de 1921, só será publicado daqui há três anos), o que faz sentido, pois obviamente, se ele fosse de fato o goleiro do Fluminense, ele estaria nesta data ainda residindo no Brasil. Listas de passageiros de navio também não me ajudaram muito, pois a única em que ele aparece, além das viagens para o Rio, datava de 1950 e incluía apenas ele e sua esposa. Eu já estava quase convencido de que ele não deixara herdeiros quando num catálogo de eleitores da Inglaterra da década de 1930 eu descobri ele, sua esposa e UMA FILHA morando nos arredores de Londres (fig. 8)! Bom, ótima noticia, mas o problema de filhas é que elas se casam e mudam de sobrenome, o que as tornam muito difíceis de serem rastreadas. No caso da filha de Archibald não foi diferente e eu passei um longo tempo sem conseguir localizá-la. Foi quando um índice de óbitos dum país do outro lado do mundo apareceu para salvar minha pesquisa!


fig 8 – Archibald, sua esposa e sua filha aparecem num catálogo de eleitores de Londres da década de 1930.


Há algum tempo eu já sabia da existência de um Archibald Thomas Waterman morando na Austrália nos anos 1950 e 1960. Esse nome aparecia com frequência em listas de eleitores do país da Oceania desse período. E também num índice de óbitos da cidade de Melbourne dessa última década. Mas havia um pequeno porém: o nome da mãe desse Waterman australiano, mencionado nesse mesmo índice, era diferente do da genitora do seu homônimo inglês! Confesso que por causa desse pequeno detalhe por um bom tempo eu relutei em seguir por esse caminho, mas eventualmente, como o nome do pai era o mesmo e a idade idêntica, eu resolvi arriscar e encomendei esse certificado de óbito junto ao cartório australiano. E se tem uma coisa que eu poderia tirar de proveito dessa pesquisa, mesmo se o resultado final não viesse a ser o esperado, foi descobrir que não existe nada mais completo que um certificado de óbito australiano! Entre nomes, datas, endereços, histórico médico, local do sepultamento, não havia mais dúvidas – embora eu não saiba o por quê da diferença do nome da mãe, provavelmente um erro de quem preencheu o registro – de que o Archibald Thomas Waterman australiano era o mesmo inglês que em 1910 havia estado no Rio de Janeiro! E para valer cada centavo que eu pagara pelo certificado, ele continha o nome de casado de sua filha, agora portadora de sobrenome Laycock.

Para minha sorte, os Laycock são uma família bastante proeminente de Melbourne – o patriarca dos Laycock emigrou da Inglaterra para a Austrália na segunda metade do século XIX e fez fortuna no comércio de lã – e existe bastante informações sobre eles espalhadas pela web. Aos poucos eu pude ir construindo a árvore genealógica da família, mas embora depois de algum tempo ela já tivesse mais de 50 nomes, eu continuava sem saber se Archibald tivera netos. O parente mais próximo que eu consegui localizar, via Facebook, foi a bisneta do irmão do sogro da filha de Archibald. Na esperança que ela pudesse me por em contato com um parente mais próximo eu enviei-lhe uma mensagem mas infelizmente jamais obtive resposta.

No começo desse ano eu voltei a carga e direcionei a minha pesquisa à arquivos de jornais australianos. E foi lá que eu descobri, em colunas sociais, que Archibald tivera netos sim, embora num primeiro momento eu fosse incapaz de descobrir seus nomes. Eventualmente eu consegui encontrar numa pequena nota de um jornal australiano da década de 1970 a menção do nome do advogado que estava inventariando o espólio da esposa de Archibald, recentemente falecida. Não por coincidência, um Laycock, cujos dois primeiros nomes eram justamente a soma dos nomes do meio de Archibald e de seu genro. Tudo indicava que se tratava do neto de Archibald, o que acabaria por se confirmar. E foi pesquisando esse novo nome, e o de sua esposa, que eu localizei os seus filhos (os bisnetos de Archibald) e pude entrar em contato com um deles, também via Facebook, mas como da outra vez, eu não obtive resposta.

Há cerca de dois meses eu revivi meu interesse pelo paradeiro de Waterman, e dei uma nova busca por uma das bisnetas de Archibald. E foi na rede social de negócios Linkedin que eu fui encontrá-la, dessa vez com endereço de e-mail. Enviei-lhe uma mensagem e ela prontamente respondeu, me pondo em contato com o seu pai, que imediatamente reconheceu o avô na foto do goleiro do Fluminense que eu lhe enviara. Começou então uma longa troca de e-mails, separados por 12 horas de fuso horário, entre o Brasil e a Austrália. Como é usual nesses casos, seu neto desconhecia sua ligação com o futebol, assunto nunca comentado com ele pelo avô com quem convivera bastante em sua infância. Mas sabia de sua paixão pelos esportes e em especial pelo críquete. O entusiasmo aumentando de ambas as partes – eu por ter finalmente encontrado o paradeiro do goleiro e seu neto por descobrir que seu avô fora um campeão de futebol – faltava a prova do crime: uma foto de Archibald que dirimisse de vez qualquer dúvida quanto a identidade do goleiro do Fluminense. Eu ainda tive que esperar um mês por ela, pois sua irmã, que detinha as fotos do avô, estava de férias e só retornou a sua residência no final de agosto. Finalmente no mês passado eu a recebi, e ao vê-la não me contive e comecei a dar socos no ar de alegria, como se o Fluminense tivesse feito um gol de título, pois ali estava diante de mim, posando ao lado da esposa, esbanjando elegância num terno bem cortado, o goleiro tetracampeão carioca pelo Fluminense (fig. 9)!


fig. 9 – A foto de um milhão de dólares! O recebimento dessa foto do casal Archibald e Florence Waterman, tirada no Rio de Janeiro em 1910, dirimiu de vez qualquer dúvida sobre a identidade do goleiro tetracampeão carioca pelo Fluminense, encerrando um mistério de mais de cem anos!


Terminava assim de forma amplamente satisfatória a minha mais longa busca por um antigo jogador do Fluminense. A pesquisa mais difícil e elaborada que eu já fizera em minha vida. Não dá para calcular as dezenas de horas que eu dediquei ao longo dos últimos dez anos atrás do paradeiro desse goleiro inglês que um dia vestiu e honrou a camisa de futebol mais bonita do mundo. Nunca esquecendo que os jogadores dessa época eram amadores e pagavam para jogar. De todos os jogadores “desconhecidos” da história do Fluminense talvez nenhum tenha sido tão importante e vencedor quanto Waterman e espero que um dia o clube das Laranjeiras lhe faça justiça e inclua seu nome na galeria de ídolos do Tricolor.

Aproveito aqui e deixo um agradecimento especial para os netos de Waterman, sem os quais esta história jamais teria tido um final feliz. Não é pouca coisa uma pessoa sair de sua rotina, passar horas à fio procurando por fotos antigas em velhos álbuns de família e ainda por cima se dar ao trabalho de sair de casa para ir na gráfica mais próxima escanear essas mesmas fotos apenas para satisfazer os caprichos de um pesquisador maluco e desconhecido do outro lado do mundo. Por fim, deixo um agradecimento especial também para o pai de Waterman, o sr. William Edward Waterman, que há 132 anos teve a brilhante ideia de dar ao seu filho mais velho um segundo nome, Thomas, sem o qual eu jamais teria descoberto o seu paradeiro!

Mas sem mais delongas, vamos a história do goleiro tetracampeão carioca:

Archibald Thomas Waterman nasceu no bairro de Westminster em Londres em 6 de abril de 1886, filho mais velho do coletor de impostos William Edward Waterman (1858-1915) e da dona-de-casa Jane Hayes (1857-1915). Archibald e seu único irmão, William Arthur, cresceram e estudaram no próprio bairro em que nasceram. Já na vida adulta Archibald se estabeleceria comercialmente como contador, membro da Chartered Accountants, espécie de Conselho Regional de Contadores dos países de língua inglesa.

Não se sabe ao certo porque Archibald imigrou para o Brasil, mas ao desembarcar do vapor Magdalena da Mala Real Inglesa no porto do Rio de Janeiro em 19 de junho de 1906, aos 20 anos de idade, o jovem inglês trouxe consigo seu amor aos esportes, em especial ao críquete, atividade que praticaria por toda a vida. Seu ingresso no Fluminense, proposto por Luiz da Nóbrega Jr., em vez de no Paysandu ou no Rio Cricket, clubes da colônia inglesa, talvez encontre explicação no seu companheiro de time e conterrâneo, Walter Salmond, cujo endereço no livro de sócios do Fluminense, Rua do Livramento 169, é o mesmo que o seu. Colega de trabalho, supostamente na empresa C. H. Walker & Co. Ltd., que em 1903 havia ganho a concorrência das obras de melhoramentos do Porto do Rio de Janeiro, é possível que o zagueiro inglês o tenha indicado ao Fluminense.

Menos de dois meses depois de ter chegado ao Rio, Waterman fazia sua estreia na meta tricolor em jogo válido pela primeira rodada do returno do Campeonato Carioca contra o Rio Cricket nas Laranjeiras. Jogo esse em homenagem aos delegados do Terceiro Congresso Pan-Americano e que contou com a presença ilustre do presidente da República, Rodrigues Alves, e do Barão de Rio Branco entre os espectadores. Mas como pode um sujeito que mal desembarcou no Rio assumir assim de bate-pronto a difícil posição de titular da meta do Fluminense? Sem testemunhas vivas que nos possam esclarecer os reais motivos, só nos resta especular.

É público e notório que em seus primeiros anos de existência o Fluminense tinha uma certa predileção por arqueiros de nacionalidade britânica. Vários haviam sido testados anteriormente mas nenhum chegou a se firmar no gol das Laranjeiras. O melhor deles, Charles Cruickshank, além de associado do Fluminense, era sócio do Paysandu, e defendia preferencialmente este último, reforçando o Tricolor, apenas nos jogos interestaduais. Quanto a Francis Walter, que fazia de dublê de goleiro e de presidente do clube, mas que dentro das quatro linhas não mandava em nada e obedecia cegamente as ordens do capitão da equipe, segundo Mário Filho era motivo de críticas por parte da torcida que via no seu status de mandatário do Tricolor o passaporte único para a sua escalação, embora seus números dentro de campo não apontem nenhum demérito em suas atuações. Fato é que a chegada de Waterman, coincidiu com a saída de Walter, que com quase o dobro da idade de seu substituto, viajou em setembro para a Inglaterra, só retornando depois do campeonato já encerrado. Se Waterman ingressou no gol do Fluminense precedido de alguma fama que lhe garantiu a imediata titularidade, eu também não sei dizer, mas seus netos são unânimes em afirmar que ele era um excelente jogador de críquete, o que pode ser facilmente comprovado analisando os placares de alguns jogos desse esporte publicados em jornais cariocas da época, onde ele era invariavelmente, entre todos em campo, o jogador que conquistava mais corridas. Como, ainda segundo seus netos, ele jogava como wicket-keeper, posição que encontra algum paralelo com o catcher do baseball, ambos “pegadores de bola”, faz todo sentido do mundo que na hora de montar a equipe, o ground-committee do Fluminense visse num jogador de críquete dessa posição o sujeito ideal para preencher a na época carente vaga de goleiro. Por fim, independente das razões de sua ascensão à meta tricolor, uma coisa é líquida e certa, Waterman não decepcionou, e devido a sua longevidade e sucesso entre as traves, pode ser considerado o primeiro goleiro relevante da história do Fluminense.

Nos quatro anos em que esteve nas Laranjeiras Waterman formou com os zagueiros Victor Etchegaray e Walter Salmond, este último substituído em 1909 por Félix Frias, um trio final quase intransponível. Desde que estreou em agosto de 1906 com o Campeonato Carioca já em andamento, o contador inglês participou simplesmente de todos os jogos da campanha do tetracampeonato de 1906-1907-1908-1909, acumulando um total de 23 vitórias, 4 empates e apenas uma derrota. Um retrospecto espetacular sem sombra de dúvida, que faz dele, junto com os irmãos Etchegaray, Félix Frias, Albert Buchan e Oswaldo Gomes os únicos a participar de pelo menos um jogo de cada uma dessas temporadas, sendo portanto também os únicos jogadores dessa geração que podem ser considerados legítimos tetracampeões cariocas. Outro feito digno de nota do jovem inglês é que ele é até hoje, passados mais de 100 anos, o único goleiro da história do Fluminense a marcar um gol durante os 90 minutos de bola rolando. O lance ocorreu em 5 de julho de 1908 na goleada de 11 a 0 sobre o Riachuelo, válida pelo primeiro turno do Campeonato Carioca. A facilidade durante o jogo era tanta que o Fluminense se deu ao luxo de designar Waterman para cobrar um pênalti. O lance porém, foi censurado pelo “O Paiz”, que viu na atitude uma desconsideração com o time verde e branco, que segundo o jornal deveria em protesto ter se retirado de campo.

Em julho de 1909 o jornal “A Imprensa” lançou um concurso entre seus leitores para a escolha do melhor goleiro em ação no Rio de Janeiro, o primeiro do gênero a ser realizado pela imprensa esportiva carioca. O plebiscito virou verdadeira febre entre os torcedores com mais de 30 mil cupons sendo preenchidos e enviados à redação do periódico. Um dia antes do final do escrutínio o resultado parcial apresentava Waterman na liderança com mais de cinco mil votos e ampla margem sobre o segundo colocado. Mas para a surpresa geral Baby Alvarenga do América recebeu mais de três mil votos nas últimas 24 horas, relegando o goleiro do Fluminense ao segundo posto (fig. 10). Ao noticiar o resultado final do concurso, entretanto, o jornal não deixou de mencionar um suposto “descuido e ausência no escrutínio” por parte do Fluminense. Seria essa crítica um indicativo de uma eleição desvirtuada por preferência clubística e que apesar de ter terminado em segundo, Waterman era de fato superior à Baby e portanto o melhor goleiro do Rio?


fig. 10 – Resultado final do concurso para a escolha do melhor goleiro do Rio organizado pelo jornal “A Imprensa” em 1909. Líder até a véspera da divulgação do vencedor, Waterman terminou a votação na segunda posição.


Após conquistar seu quarto Campeonato Carioca, o segundo de forma invicta, Waterman viajou para seu país natal, onde em 28 de fevereiro de 1910 casou-se numa igreja cristã em Westminster com Florence Crowther (1885-1973), filha de um negociante de lã. Quatro dias depois o casal embarcava de volta ao Rio, terminando as especulações de que Waterman não mais defenderia o Fluminense. Mas 1910 não foi um bom ano para o Tricolor que viu sua hegemonia no futebol carioca chegar ao fim. Não mais capaz de competir em condições de igualdade com o Botafogo, cujos jogadores, em sua maioria adolescentes, tinham, ao contrário dos comerciários e bancários do Tricolor, as tardes livres para treinar. Era o fim de uma era. A geração vitoriosa de 1902 que criara o Fluminense, começava a dar lugar a uma geração mais nova mas não menos talentosa, formada em sua maioria por estudantes universitários.

Ao disputar sua última partida pelo Fluminense em setembro de 1910, Waterman acumulara 49 jogos – de 53 possíveis – com a camisa tricolor. O quinto jogador que mais havia atuado pelo clube das Laranjeiras em sua primeira década de existência. Atrás apenas de Victor Etchegaray (77), Emílio Etchegaray (74), Félix Frias (68) e Edwin Cox (59). Desses 49 jogos, 34 foram pelo Campeonato Carioca e os outros 15, amistosos, sendo 11 destes contra times paulistas e 4 contra equipes inglesas. Um retrospecto geral de 35 vitórias, 8 empates e apenas 6 derrotas. Mas Waterman não defendeu só o Fluminense nos anos que morou no Rio pois também envergou a camisa da seleção carioca e de um combinado de estrangeiros residentes no Rio em 1907 e 1908, em amistosos contra a seleção de São Paulo e um selecionado argentino. Seu nome apareceria nos noticiários esportivos cariocas pela última vez em junho de 1911, participando de um festival esportivo no Rio Cricket de Niterói.


fig. 11 – Equipe do Fluminense campeã carioca invicta de 1908. Da esq. para a dir.: Nestor, Buchan, e Leal; Oswaldo Gomes, Horácio da Costa Santos, Edwin Cox, Emílio Etchegaray e Félix Frias; Victor Etchegaray, Salmond e Waterman.


fig. 12 – Equipe do Fluminense campeã carioca invicta de 1909. Da esq. para a dir. e de cima para baixo: Victor Etchegaray, Waterman, Félix Frias e Buchan (de terno); Nestor, Mutz e Galo; Weymar, Jack da Costa Santos, Hargreaves, Emílio Etchegaray e Motta.


O jornalista Mário Filho disse certa vez que Waterman foi o primeiro goleiro a fazer uso regular das mãos, numa época que os arqueiros estavam mais preocupados em rebater a bola, socá-la, esmurrá-la, dar munhecaços, do que tomar posse dela. Como se fosse uma ofensa imperdoável segurar ela com as mãos num jogo que por definição era para ser jogado com os pés. O movimento clássico ao defender um chute de curvar o corpo para frente, encolher a barriga e abraçar a bola como se estivesse embalando um bebê, teve em Waterman um dos seus primeiros propagadores. Seu jogo calmo e seguro sempre foi muito elogiado, mas nunca tanto como após um encontro entre as seleções do Rio e de São Paulo em agosto de 1907, quando a imprensa paulista curvou-se à sua atuação, dirigindo-lhe adjetivos dos mais variados como “incomparável” e “extraordinário”, só para citar alguns (fig. 13).


fig. 13 – Waterman mereceu enormes elogios da imprensa paulista por sua atuação num jogo entre as seleções carioca e paulista em 1907. O clipping acima de um jornal carioca reproduz o que falou sobre ele os principais jornais de São Paulo.


Waterman deixou o Brasil em definitivo em 16 de outubro de 1912 com destino à sua Londres natal, onde iria se juntar a sua esposa que havia acabado de dar a luz à única filha do casal. Durante a Primeira Guerra Mundial ele se alistou na Marinha inglesa, onde exerceu a função de telegrafista, recebendo ao final do conflito uma medalha por seus serviços. Em 1939 sua filha se casou com um dos herdeiros da proeminente família Laycock de Melbourne, conhecidos fabricantes e exportadores de lã. Onze anos depois, Waterman e sua esposa seguiram os passos da filha e também se mudaram para a Austrália, fixando residência em Kew East, no subúrbio de Melbourne. Um eterno apaixonado por esportes, Waterman continuaria cultivando essa paixão em solo australiano, ora levando seus netos para assistir jogos de críquete no Melbourne Cricket Ground, ora jogando lawn bowl (bocha) no North Balwyn Bowls Club, clube que presidiu por algum tempo. Archibald Thomas Waterman faleceu em Melbourne em 4 de março de 1969, aos 82 anos. Seu corpo foi cremado e suas cinzas depositadas dois dias depois no Springvale Botanical Cemetery.


fig. 14 – Waterman imigrou para a Austrália em 1950.


fig. 16 – Waterman viveria sua aposentadoria na Austrália.


fig. 17 – Waterman em frente a sua residência em Kew East, Melbourne, em foto de 1964.


fig. 18 – Archibald Thomas Waterman, goleiro tetracampeão carioca pelo Fluminense.

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